Um neopaganismo levedou a fé de tal forma que muitos transformaram a oração em uma simples fórmula para canalizar e receber os favores divinos. Para obter resposta às petições, implora-se, pena-se, insiste-se, no aguardo de que Deus escute. Quando não se recebe, justifica-se assumindo culpas irreais, como falta de disciplina. Acha-se que é necessário continuar implorando para Deus se sensibilizar. Mede-se a espiritualidade pelo número de respostas aos seus pedidos e, quando malsucedidos, castiga-se por não merecer. A própria linguagem denuncia romeiros católicos e evangélicos, que lotam os espaços religiosos: é preciso “alcançar uma graça”.
Graça liberta do imperativo de dar certo. O Sermão da Montanha começa felicitando pobres em espírito, chorosos, mansos e perseguidos. Os triunfantes não podem se gloriar de serem mais privilegiados do que os malogrados. Graça revela um Deus teimosamente insistindo em permanecer do lado de quem não conseguiu triunfar; até porque a companhia de Deus não significa automática reversão das adversidades.
Graça permite o autoexame, a análise das motivações mais secretas da alma, sem medo. Na série de afirmações sobre ódio, adultério, divórcio e vingança, Cristo deixou claro que ninguém pode se vangloriar quando desce às profundezas do coração. No nível das intenções, todos são carentes. O olhar sutil indica adultério. O ódio despistado revela homicidas em potencial. A vingança disfarçada contamina as ações superficiais. Lá onde brotam as fontes das decisões, tudo é confuso; vícios e virtudes se confundem. Somente com a certeza de que não haverá rejeição é possível confrontar os intentos do coração para ser íntegro.
Graça convida a amar. Jesus afirmou que Deus “faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos”. Para revelar sua bondade, Deus não precisou ser convencido a querer bem. Deus não faz acepção de pessoas; o seu amor não está condicionado a méritos. Quando as pessoas são inspiradas por gratidão, reconhecimento e admiração por tão grande amor, se sentem impulsionadas a imitá-lo. Deus surpreende por dispensar bondade sem contrapartida de virtude. Assim, na improbabilidade de os seres humanos se mostrarem graciosos, os discípulos devem almejar a única virtude que pode torná-los perfeitos como Deus -- o amor.
Graça é convicção de que o acesso a Deus não depende de competência. Quem acredita que será aceito pelo tom de voz piedoso ou pela insistência em repetir preces nega a paternidade divina. Antes de pedirmos qualquer coisa, Deus já estava voltado para nós. Os exercícios espirituais não precisam ser dominados como uma técnica, mas desenvolvidos como uma intimidade. O secreto do quarto fechado representa um convite à solitude, à tranquilidade que não acontece com sofreguidão.
Graça libera energia espiritual que pode ser dirigida ao próximo. Buscar o reino de Deus e sua justiça só é possível porque não é preciso preocupar-se com o que comer e vestir e por jamais ter de bater na porta do sagrado para conquistar benefícios particulares. Basta atentar para os lírios do campo e pardais para perceber que as ambições devem escapar à mesquinhez de passar a vida administrando o dia-a-dia.
Graça devolve leveza para que os filhos de Deus sintam-se à vontade em sua presença, como meninos na casa dos avós. Graça libera as pessoas para se tornarem amigas de Deus, em vez de vê-lo como um adestrador inclemente. Graça não permite delírios narcisistas. Nenhuma soberba se sustenta diante da percepção de que Deus aposta na humanidade e ainda se convida a cear entre amigos.
Graça distensiona o culto porque avisa: tudo o que precisava acontecer para reconciliar a humanidade com Deus foi concluído: “Consumatum est”. Portanto, enquanto a graça não for redescoberta de fato como a mais preciosa verdade da fé, as pessoas podem até afirmar que foram livres, mas continuarão presas à lógica religiosa das compensações. Devedores, jamais entenderão que o reino de Deus é alegria. A graça liquida com pendências legais. Não restam alegações a serem lançadas em rosto -- “Quem intentará acusação contra os escolhidos de Deus?”.
A religiosidade legalista insiste que é perigoso falar excessivamente sobre a graça. Anteparos seriam então necessários para proteger as pessoas da liberdade que a graça gera. Mas o amor que tudo crê, tudo espera e tudo suporta não aceita outro tipo de relacionamento senão abrindo espaço para que haja amadurecimento. Deus ama assim, e o Sermão da Montanha não deixa dúvidas de que todo discurso sobre o reino de Deus deve começar com graça.
Ricardo Gondim
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